MEU IRMÃO MORREU DE CETOACIDOSE DIABÉTICA


 

Nota do editor: Para receber apoio após uma morte causada pelo DM1, visite a página Jesse Was Here, um programa da Beyond Type 1 com recursos para cônjuges, irmãos, avós e amigos que precisam de ajuda.


 

Acredito que, em geral, ainda há muita confusão sobre o diabetes tipo 1. Existem muitas concepções erradas que são comuns, como a de que a condição é causada por um hábito negativo (comer açúcar demais) ou que, se a sua avó tinha alguma forma de diabetes, você também terá. Minha própria avó chamava de “docebetes”, o que definitivamente me incomodava. Outra coisa que falam muito em conversas sobre DM1 é “só”. “Você não poderia só fazer isso…”, “por que você não pode só…” e “pelo menos o diabetes é só…”.

Bem, vamos falar sobre a cetoacidose diabética (também conhecida pela sigla em inglês DKA). Eu já percebi que quando eu uso o termo “DKA” as pessoas não reagem muito, porque não sabem nada sobre isso. A cetoacidose diabética é uma complicação severa e potencialmente fatal que afeta principalmente as pessoas que vivem com diabetes tipo 1. A DKA pode surgir quando a sua glicemia está alta e o nível de insulina está baixo. Esse desequilíbrio pode causar um acúmulo de cetonas, que são tóxicas. Se não for tratada, a DKA pode levar ao coma e à morte.

Eu fui diagnosticada com DM1 quando tinha 8 anos. Por sorte, a minha mãe conhecia os sintomas e eu fui hospitalizada com uma glicemia de cerca de 500 mg/dl (27,8 mmol/L). Eu tinha acabado de me mudar para uma nova casa, em uma nova cidade, e estava prestes a começar a frequentar uma nova escola. Agora, eu também teria que enfrentar uma nova condição. Minha família me apoiava muito, mas nós lidávamos com isso agindo como se nada estivesse errado, para que eu não me sentisse isolada.

Eventualmente, o resultado disso foi que eu passei a lidar com a condição de uma forma leviana. Eu certamente quis ter independência o mais rapidamente possível: eu queria fazer as injeções em mim mesma, não queria pedir ajuda quando tivesse uma hipoglicemia e resistia em receber auxílio quando a glicemia estava alta. Quando alguém perguntava como estavam os meus níveis de açúcar no sangue, eu ficava na defensiva, porque sentia que estava fracassando se eles não estivessem no intervalo ideal. Isso criou uma montanha-russa na minha rotina de cuidados e eu provavelmente poderia escrever até um livro sobre isso, mas é um assunto para depois.

Lembro vivamente de uma noite em que eu estava vomitando no quarto (eu tinha cerca de 12 anos), sem forças nem para sair da cama, e o meu irmão mais velho, Nick, me olhava com medo, mas em silêncio. Minha mãe me obrigou a ir ao hospital e eu estava em cetoacidose diabética; me deram medicamentos na veia e uma bronca, com o médico falando sobre todas as complicações futuras que poderiam surgir se eu não levasse a condição a sério. A realidade era dura e clara, mas isso só fez com que eu silenciasse ainda mais.

Mais tarde, enquanto cursava a faculdade, eu já colecionava três internações por DKA. Lembrando dessa época, fico horrorizada por não ter combinado um “plano de emergência” específico com outras pessoas. Por sorte, eu tinha feito amigos incríveis que me apoiavam muito, mas cheguei a morar sozinha em um apartamento por alguns anos sem nem avisar ao zelador que eu vivia com DM1. Qualquer pessoa com conhecimento ou experiência com a cetoacidose diabética sabe que eu tenho sorte de estar viva e poder contar essa história.

Nick, o meu irmão mais velho (em cerca de dois anos e meio), perguntava para a minha mãe por que a cetoacidose diabética era tão grave, por que eu passava tanto tempo no hospital e se não era “só” algo parecido com uma gripe. Eu tinha uma ótima relação com o meu irmão, mas não falava muito sobre o diabetes. Eu ficava na defensiva, tinha vergonha e às vezes só estava sendo teimosa. Por isso, não dividi com ele muito sobre a condição, pelo menos não até que ele mesmo fosse diagnosticado com DM1, quando tinha 22 anos.

Eu lembro exatamente onde estava sentada, como estava o tempo e o modelo de celular que eu tinha na hora em que o Nick me ligou e falou: “Eu não consigo acreditar em tudo que você passou nesses anos todos. Minha irmãzinha é uma heroína desde pequena e eu aqui reclamando de uma tira de teste”. Eu ri alto, me enchi de orgulho, emoção e alívio e nós conversamos por uma hora sobre todas as dificuldades que a condição traz.

Meu irmão foi a primeira pessoa que realmente sabia do que eu estava falando quando eu me abria sobre o diabetes e empatizava com as minhas batalhas diárias como ninguém. Eu fiquei até culpada porque parte de mim se sentia aliviada, mas é claro que eu não queria que ele tivesse a condição; eu só tinha 11 anos de conversas sobre DM1 para colocar em dia. Nós brincávamos que ele estava em uma fase de lua-de-mel porque por um tempo ele precisava de pouca insulina e ficava perto de unicórnios, mas eu também me sentia mal porque sabia bem demais como a condição pode se complicar. Logo passamos a conversar frequentemente sobre o alto custo dos itens de que necessitávamos e criamos um hábito de nos telefonar a cada vez que íamos à farmácia para comparar quanto tínhamos gastado. Nick tinha mudado para Minnesota, começado uma nova carreira e não tinha convênio médico. Ele sempre gastava mais do que eu, o que me deixava péssima.

Quando eu tinha 20 e poucos anos e lutava para controlar o DM1, tive a sorte de encontrar o homem dos meus sonhos. Fui forçada a falar com ele sobre a condição quando ele abriu uma gaveta e encontrou umas 100 seringas que eu ainda não havia descartado. Imagine a surpresa dele! Mas ele ficou muito interessado e me apoiou e incentivou mais do que eu achava possível. Alguns anos depois, estávamos noivos e com o casamento marcado em uma vinícola digna de revista na Califórnia. Minha vida estava melhor do que nunca. Nick tinha me ligado há pouco tempo, logo após experimentar o terno com o seu filho, que seria o pajem na cerimônia, e isso só fez com que o casamento ficasse ainda mais real para mim.

A família de Nick ia chegar de avião e passar uma semana conosco. Eu não poderia estar mais animada por celebrar o meu casamento com todos eles. Em uma noite de domingo, em fevereiro, enquanto minha melhor amiga e eu estávamos separando os convites da cerimônia, Nick me ligou para saber se estava tudo bem, como sempre fazia. Ele parecia cansado e comentou que não estava se sentindo muito bem há alguns dias. Distraída com os preparativos, eu falei brevemente para ele se cuidar, disse que o amava e que ligaria de novo em breve.

Poucos dias depois, enquanto eu estava no trabalho, a namorada dele (que também era a mãe dos seus filhos) me ligou para dizer que Nick estava em coma no hospital. Paralisada, sem poder acreditar e em pânico, eu tentava entender o que tinha acontecido. Não me lembro muito bem da conversa, porque só conseguia pensar no coma, mas eventualmente fiquei sabendo que Nick estava com uma gastroenterite há alguns dias, ficou gravemente desidratado e sofreu um ataque cardíaco.

Ele tinha sido ressuscitado no chão de casa. Já no hospital, os médicos haviam feito um procedimento para reduzir o inchaço no cérebro e ele deveria acordar nos próximos dias. Já falei que meus pais estavam viajando e com pouco sinal de celular? Naquela noite, sem conseguir dormir, eu pensava em como chegar em Minnesota antes que ele acordasse para brincar sobre como ele podia ter feito tanto drama por causa de uma dor de barriga. Imaginei como ele sorriria e o abraço que daríamos.

Na manhã seguinte, eu saí para trabalhar sem aceitar direito a situação. Pensei que faria algumas coisas e avisaria ao pessoal do trabalho o que tinha acontecido e por que eu precisaria viajar para Minnesota em breve. Eu tinha chegado há menos de dez minutos quando a namorada de Nick me ligou para avisar que os médicos tinham reavaliado a condição dele e falou a temida frase: “não há mais nada que possa ser feito”. Manteriam ele vivo com o auxílio de aparelhos até que a família chegasse. Eu caí de joelhos e deixei escapar um grito que só uma tragédia daquelas poderia causar.

Meus pais, meu noivo e eu fizemos a viagem inacreditavelmente longa entre Minnesota e Califórnia, que incluiu um voo atrasado inesperadamente que só nos deixou mais angustiados. Finalmente, chegamos ao hospital. Assim que vi Nick, ele parecia até saudável. Tirando os aparelhos, ele não parecia estar muito mal. Naquela noite, eu fiquei segurando a mão dele e implorei um trilhão de vezes para que ele acordasse.

Os médicos explicaram que, por causa do ataque cardíaco, o cérebro dele havia perdido muito oxigênio e ele havia tido morte encefálica. Atendendo a nossos pedidos, eles concordaram em fazer outro exame pela manhã para verificar novamente se havia alguma atividade cerebral. Rezamos com todas as nossas forças por um milagre. O exame, no entanto, não revelou milagre nenhum, e agora estávamos de mãos dadas em volta da cama de Nick enquanto um padre recitava uma última oração. Nick morreu no dia 27 de fevereiro de 2009. Os últimos passos que dei antes de sair do hospital, passando por um corredor frio e escuro, com portas demais se fechando atrás de nós, deixando Nick para trás, comigo e minha mãe abraçadas, me assombram até hoje. Quando as portas de entrada se abriram, o frio do inverno de Minnesota foi como um tapa na cara. O ar que eu inspirava era fisicamente difícil de engolir e lágrimas dolorosas apertavam meus olhos. Pensei que era impossível que o sol brilhasse naquela escuridão de morte.

Cetoacidose diabética foi a causa de morte declarada. Os médicos e as enfermeiras estavam surpresos com o caso, considerando como ele era saudável. Eles “nunca tinham visto nada assim”. Conseguimos doar os órgãos dele, até mesmo o coração. Eu gosto de pensar que a pessoa que recebeu o coração de Nick também ganhou seu senso de humor, sua alma bondosa, seu amor pelo baixo, seus incríveis passos de dança e o carisma que era a sua marca registrada.

Dois funerais depois (em Minnesota e na Califórnia), ficamos sabendo de mais detalhes da sequência trágica de acontecimentos. Basicamente, Nick pensou que estava com gastroenterite, da qual ele já tinha se recuperado algumas semanas atrás. Desta vez, no entanto, o quadro piorou rapidamente. Ele começou a vomitar com frequência, sua glicemia ficou instável porque ele estava com resistência à insulina e, momentos antes de sofrer o ataque cardíaco, ele pediu para ser levado ao hospital.

Como ele não tinha convênio, houve uma certa hesitação para levá-lo ao médico ou ao hospital (N.T.: nos Estados Unidos, não há serviço público de saúde).

Fico muito mal por saber que a falta de convênio (ou, mais especificamente, dinheiro) fez com que um tempo precioso fosse perdido e até mesmo foi causa de preocupação para o meu irmão e a sua família enquanto ele piorava. Eu também sofro por saber que a morte dele provavelmente poderia ter sido evitada. Eu já passei e sobrevivi à cetoacidose diabética inúmeras vezes nos 26 anos em que eu vivo com DM1. Estou aqui para contar a história dele e não consigo deixar de pensar que ele ainda estaria vivo se tivesse chegado antes ao hospital. Ele sabia como a combinação de desidratação e DKA era grave? Eu devia ter falado isso para ele um milhão de vezes mais. Se ele tivesse procurado um médico antes, ele não teria desenvolvido cetoacidose diabética, tido um ataque cardíaco e morrido? Eu gostaria de dizer que não, isso não teria acontecido, mas nunca vamos saber.

O que sabemos, no entanto, é que a cetoacidose diabética pode ser fatal. Sabemos que qualquer pessoa que viva com DM1 precisa estar preparada para uma emergência e que seus familiares, amigos, professores, colegas de trabalho, médicos, enfermeiras e estranhos precisam estar aptos a reconhecer os sinais e sintomas da DKA. Sabemos que precisamos lutar por mais conscientização sobre a DKA. Sabemos que precisamos levar essa condição a sério. Sabemos que a DKA já levou vidas demais. E o mais importante para mim é que eu vou passar o resto da minha vida mantendo o espírito de Nick vivo para seus dois filhos e lutar por conscientização sobre a DKA. Vou enfrentar a minha batalha de saúde pessoal com positividade, porque essa perda profunda mostra como a vida é sagrada. No meio de nossas rotinas aceleradas, pare para pensar nas inúmeras maneiras em que você pode ajudar outra pessoa. Seja por meio de aprender o que você pode fazer em uma emergência ou simplesmente por ouvir as preocupações de um amigo, você pode evitar uma tragédia como essa.

WRITTEN BY Katie Lesley , POSTED 01/06/20, UPDATED 03/15/21

Katie tem diabetes tipo 1 desde os 8 anos de idade. Ela é uma esposa e mãe orgulhosa, que vive com sua família em Lodi, Califórnia. Ela defende a conscientização da ACD no tratamento e atualmente está participando de um ensaio clínico de "qualidade de vida" em Stanford para o pâncreas artificial da Medtronic.